11 fevereiro, 2006

Não sei bem porque estou agora contando esta história. Em todo o caso, planejava contá-la algum dia, e a lembrança dela me voltou hoje de um modo muito vigoroso. Tenho de fazer um pequeno prólogo para torná-la compreensível.

Estudei no Colégio Antônio Vieira, dos padres da Companhia de Jesus, aqui em Salvador. Naquele tempo, quase todos os jesuítas que conheci nesta Casa famosa eram italianos; a eles devo o encantamento com a língua de Dante e com o latim. No Vieira fiz (depois do Ginásio) o que então se chamava de Curso Colegial, opção de quem se interessava por Humanidades; na prática, quase todo o mundo que o cursava fazia vestibular para Direito. Segui esta regra. Os candidatos à Faculdade de Direito deviam, no vestibular, fazer prova de latim. No programa, a Catilinária, de Cícero, e a Eneida, de Virgílio. Por Cícero não me interessei muito; mas a Eneida me encantou. Fiz um grande esforço para a ler inteira no original, embora só dois Cantos dela constassem da prova. Assim Virgílio me enfeitiçou e fez nascer em mim um desejo muito forte: ler Homero, também no original.

Passei no vestibular, mas abandonei logo o Curso de Direito, com menos de um mês de freqüência às aulas. Fiz novo vestibular para Filosofia, e depois de duas ou três aulas larguei o curso. Estava incerto quanto a minha vocação. Entre minhas poucas certezas, estava, porém, a vontade de tornar-me helenista. Um amigo ilustre, o Professor Agostinho da Silva, cujo centenário está sendo agora celebrado no Brasil e em Portugal, falou-me que na recém criada Universidade de Brasília, para onde ele estava indo a convite de Darci Ribeiro, pontificava um grande helenista, amigo seu, que acabava de criar o Centro de Estudos Clássicos. O nome de Eudoro de Sousa já era muito festejado em nosso país; este professor português fizera nome na Universidade Federal de Santa Catarina e na USP.

Decidi ir para Brasília a fim de estudar com ele.

Um pouco como os alunos das velhas Universidades européias, nas remotas eras em que elas surgiram, não fui atrás propriamente do curso, mas de um mestre... E de fato encontrei um, de primeira grandeza. Fiz o vestibular para o Instituto de Letras, e antes mesmo das provas "internei-me" no CEC, devorando os livros que o mestre Eudoro me dava a ler. Tratei logo, é claro, de estudar grego com o máximo afinco. Era minha prioridade máxima. Além das aulas de Língua Grega, a minha concentração maior era nas disciplinas ensinadas por Eudoro, que cobriam todo o campo da Filologia Clássica, entendido com a amplitude de sua formação germânica na Classisches Altertumswissenschaft.

Em pouco tempo, devorei o manual de Kalinka e o livro de verbos de Delotte, além de algumas veneráveis gramáticas de grego disponíveis no Centro. O mestre Eudoro fazia-me traduzir os textos dos exercícios e depois "revertê-los" ao grego, repetindo a operação até estar seguro de que podia escrever corretamente na velha língua o que nela tinha lido, de modo a "incorporá-la" assim. Depois das aulas matinais, eu passava a tarde no CEC estudando,; e após o jantar (quando jantava), voltava para lá, onde, com a permissão do Diretor e a boa vontade dos vigias, ficava estudando, muitas vezes até de madrugada. Era um regime de trabalho duro mesmo, esse que eu me impunha. Mas apesar das dificuldades foi um tempo muito feliz de minha vida.

No começo, enquanto não recebi a primeira bolsa, freqüentemente me faltava dinheiro até para pagar o módico preço das refeições no Restaurante Universitário. Professores conterrâneos e amigos que logo fiz me convidavam com freqüência para almoçar com eles; às vezes eu mesmo os convidava, desde que o almoço fosse em suas casas. Tive também a ajuda generosa dos vigias, com quem fiz logo amizade, por conta de meus hábitos noturnos... Eles de vez em quando abriam o restaurante altas horas da noite para que eu pudesse lá me abastecer com pães, frutas, doces, coisas que sempre sobravam. Algum dia falarei aqui das muitas coisas que aprendi com estes amigos generosos... Através deles, fiz amizade também com alguns operários que estavam empenhados na construção do imenso prédio do Instituto Central de Ciências da UNB.

Não demorou muito que eu me sentisse capaz de empreender a leitura da Ilíada. O grego homérico não é muito difícil. A sintaxe é simples, não oferece problemas; prevalece a parataxe na sua construção. A dificuldade está no imenso vocabulário, na variedade das formas dialetais encontráveis aí; mas com um bom Lexikon Homericum e muita disposição, este obstáculo pode ser logo vencido. A recorrência das fórmulas ajuda muito. O ritmo do hexâmetro oferece um poderoso apoio à memorização. E a beleza fascinante do texto estimula a gente. Além disso o mestre Eudoro de vez em quando me ajudava com ricas explicações, que podiam durar horas, a propósito de passagens, às vezes de dois ou três versos, que provocavam a reflexão sempre profunda desse doublet de filósofo e helenista. Assim, numa bela sexta-feira friorenta do mês de junho, terminei, emocionado minha primeira leitura da Ilíada.

Eu já era bolsista, tinha algum dinheiro no bolso. Decidi comemorar. Baianamente, com uma boa farra. Dirigi-me, depois do jantar, a um bar, na verdade um barraco na Asa Norte, situado estrategicamente num trecho que limitava com o campus; era o bar dos candangos que trabalhavam na construção do ICC, dos serventes, dos peões da UNB. Segui o estilo deles, "amparando", como diziam, a cerveja com goles de boa cachaça. Não demorou que eu ficasse completamente bêbado. Tanto que logo subi à mesa e comecei a recitar:

Mênin aeíde, theá, Peleiádeo Akhilleos...

O que aconteceu então ainda me espanta. O mais provável numa situação dessas, em que um rapaz bêbado sobe à mesa de um boteco e recita coisas ininteligíveis, talvez fosse uma intervenção do dono do estabelecimento para conter o bagunceiro, ou uma vaia dos circunstantes, ou algumas gargalhadas, uma grande gozação. Mas deu-se outra coisa. Os candangos fizeram um silêncio interessado e respeitoso; muitos se aproximaram e rodearam minha mesa, ouvindo atentamente. Eu estava completamente arrebatado pela emoção e pela embriaguez. Quando o angustiado sacerdote Crises iniciou sua soturna caminhada pela praia do mar multimurmurante, prestes a fazer a prece furiosa ao deus do arco de prata, eu não me contive, as lágrimas rolaram pelo meu rosto, e tive de parar. Rompeu então uma chuva de aplausos dos candangos. Um deles, cambaleante, me abraçou, também com lágrimas nos olhos e disse: "Eita baianinho danado! Que coisa mais bonita essa poesia que você falou!" Lembro-me de que recebi ainda vários outros cumprimentos da turma toda. Na hora, achei muito natural. Mas no dia seguinte, com a lucidez que sucedeu a uma espantosa ressaca, fiquei perplexo.

Quando contei ao mestre Eudoro o acontecido, ele primeiro riu muito de meu porre homérico; depois comentou que a cachaça não explicava tudo: "Esse teu público é mesmo gente de valor".

Sim, dou razão a ele. Os pobres candangos, na maioria semi-analfabetos, com quem celebrei a realização de um sonho encarecido, a seu modo me ensinaram uma preciosa, inesquecível lição de poesia.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

pois é Nego, e pensar que também fui seduzida por estes versos, mesmo- 30 anos depois- não ter a mínima idéia do que significam. Eles, como você, continuam me encantando.

terça-feira, 14 fevereiro, 2006  
Anonymous Anônimo said...

as emoções superam o entendimento. não que um seja mais importante que o outro, pois os dois se completam. mas ainda assim o sentir se sobrepõe...
a sua história me emocionou muito. grande abraço amigo querido, saudades!

terça-feira, 14 fevereiro, 2006  
Blogger Marti said...

Que lindo!

quarta-feira, 15 fevereiro, 2006  
Blogger Ana said...

Ordep,

Não tenho certeza mas vou chutar: você é o Ordep que fez uma tradução da Gesta de Gilgamesh? Eu li e adorei.

Mesmo que não seja, gostei do seu blog. Voltarei mais vezes!

Abraços

Ana

quinta-feira, 11 maio, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Muito lindo mesmo.

segunda-feira, 12 novembro, 2007  

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