28 setembro, 2005

ACLAMAÇÃO DA RAINHA POBRE
(CARTA A UMA JORNALISTA)



Imagine, amiga, que um grupo de peritos dedicados ao estudo de Salvador, escolhidos entre os que melhor a conhecem, está reunido numa sala, em algum centro de pesquisas. Suponha, agora, que eles beberam de um vinho divino e têm um ataque de sinceridade: um impulso forte e inconveniente, mas irresistível. Você, que chega inadvertida, pode ter uma surpresa: a de ouvir uma confissão embaraçada... Como sofrem de um dionisíaco excesso de lucidez, esses conhecedores se acham inseguros de sua ciência. Sentem que Salvador lhes escapa, cada vez mais. Já dizem que a parte oculta da cidade é justamente a maior, e se queixam de que sua imagem radiante — a visibilidade exaltada de sua forma — ajuda a escondê-la.

Está claro que nenhuma grande metrópole se desnuda facilmente, nenhuma se franqueia inteira aos olhos de seus estudiosos. Todas têm dimensões de sombra, domínios ocultos, dobras impenetráveis, espaços velados, histórias submersas, tempos interpostos. Mas o caso de Salvador parece especial, por causa do enorme vulto do que nela se desconhece — e por outro motivo ainda: Salvador é o que talvez se possa chamar de uma cidade mascarada, uma cidade que se esconde em sua exibição.

Percebê-lo já representa um ganho de lucidez... Porém a visão que assoma quando se reconhece este fato é muito sombria. Pois ainda temos de fazer um esforço significativo para saber o quanto ignoramos esta cidade. Carecemos de um esforço prévio para formar idéia do vulto, do alcance, dos contornos da obscura metrópole, traçando, no mapa de nossa imaginação científica, com a ousada timidez dos velhos cartógrafos, os blocos de terra ignota.

Por favor, entenda bem: não faço pouco dos urbanistas, sociólogos, economistas, geógrafos et caeteri empenhados no estudo de nossa capital. A ignorância de que falo é denunciada justamente por eles que, volta e meia, lamentam a precariedade dos dados disponíveis acerca de uma imensa parcela de Salvador, a pouca confiabilidade de não poucos índices com que se trabalha na leitura deste complexo urbano, a dificuldade de compatibilizar os parâmetros que orientam muitos dos levantamentos aqui regularmente efetuados por diferentes agências. Os especialistas em Salvador (não sou um deles, mas estou perto o bastante para ouvir seus protestos) sofrem com o estado de uma informação desorganizada, fragmentada, insegura, que facilmente caduca. A que eles mesmos produzem pode cair num estranho sorvedouro... Pois temos boas pesquisas, notáveis ensaios e ricas análises sobre nossa cidade que os responsáveis por sua produção compartilham de modo precário; transitam em âmbito demasiado restrito; há informação importante que é mal distribuída — e os saberes que pouco circulam se enfrquecem; o conhecimento que mal se discute resulta empobrecido. Para técnicos e cientistas, isto é muito grave. Pois ciência é discussão. Só se pode tomar ciência de uma coisa discutindo-a. No entanto... Que debates significativos temos hoje sobre Salvador?

Há mais um fator de obscurecimento a turvar a visão desta metrópole. Do saber disponível sobre ela, pouco lhe chega. Estudos feitos sobre Salvador nem sempre alcançam as instâncias onde se dá sua gestão, para cumprir os fins últimos a que eles visam: transformá-la, preservá-la, melhorá-la. Ora, conhecimento que não se aplica, que não é levado a sério nem se traduz em ação pertinente, é conhecimento ignorado... Veja se não é muita escuridão!

. Sublinho, mais uma vez, que elas acusam a enorme dimensão das lacunas existentes na imagem soteropolitana.

Aí está o ponto que destaco. Quero reportar-me à nossa cidade invisível: a Salvador escondida, mascarada, ignorada; a que, ao nosso sentimento da forma urbana, parece quase amorfa, ou surge como toda “informal”; ao “resto” tão maior que a urbe sempre contemplada, ao seu corpo nebuloso, que se afigura quase impenetrável por trás da cortina dos espaços urbanizados (e da cenografia às veze acrescida a eles, meio que substituindo uma efetiva urbanização). Trata-se da Salvador que Débora Nunes, por exemplo, anda a explorar de modo criativo, com outros lúcidos navegantes de nossas trevas; a Salvador que pesquisam e tentam trazer à luz não geógrafos como Ângelo Serpa, sociólogos da cepa de Gey Espinheira, Eduardo Paes Machado, Maria da Graça Druck Faria, Maria Brandão, Jefferson Bacelar et caeteri (peço desculpas aos muitos que omito com a injustiça da limitada citação): a cidade oculta, de homens e mulheres condenados ao desconhecimento, desprezados, ignorados.

Perversa indiferença esconde parcelas significativas de nossa metrópole, joga nas trevas uma grande massa de sub-cidadãos. A cidade espetacularmente ostentada sufoca sob a fantasia que lhe vestem, torna-se invisível sob a cintilação do seu fantasma. E pesados silêncios ainda se abatem sobre ela que segue velada por sua própria sombra.

Pense, amiga, nas políticas urbanas aplicadas aqui. Em geral, seu traçado se pré-define segundo injunções que nunca vêm à tona. Os planos fazem-se ex post facto — e esse planejamento se quer secreto, pouco ou nada se abre à discussão; menos ainda se franqueia à participação do povo da cidade. Fica, assim, “protegido” do debate e do interesse público. Decorre um policy-making curiosamente despolitizado — uma radical negação da pólis .

Eis um dos elementos da ocultação que afeta a vistosa Salvador. Mas devo apontar ainda outro, que Você conhece bem. Jornalistas sérios estão, a toda hora, mostrando como dados oficiais sobre segurança, educação, saúde têm sido aqui manipulados; não raro, mistificam mais do que revelam, pintando quadros pouco condizentes com a realidade do país, do estado, do município.

É certo que o problema não se dá apenas com Salvador. Mas aqui, por vezes, o exagero é grande.

Há coisa de poucos anos atrás, Débora Nunes desnudou a inépcia de um espetacular programa de recuperação de infra-estrutura urbana que era só isso mesmo: espetáculo. E Você bem conhece a extensão grotesca dos engodos de uma publicidade enganosa — mas escandalosamente dispendiosa — que exibe uma Bahia onírica na mídia, no palco eletrônico; sabe como tem um sabor amargo de ironia trágica a comparação dessa imagem publicitária com a triste realidade de nossa metrópole faminta, desamparada, doente, insegura.

Pense nos números dourados sobre a educação em contraste com a situação caótica de tantas escolas, principalmente da periferia: na farsa dos altos índices de aprovação que escondem o analfabetismo de jovens diplomados na mais santa ignorância. Ou, se quiser, pense na inalcançável caixa preta da segurança pública... Não preciso dar-lhe outros exemplos. Você já entendeu porque destaco aqui um tremendo problema de Salvador: a maquiagem de que ela é vítima.

Considere a obscena desigualdade verificável aqui: um mal brasileiro que nesta metrópole vem-se agravando de modo terrível. Considere a pauperização crescente na RMS, a precarização das condições de trabalho verificadas no seu âmbito, a crônica generalização do desemprego e do subemprego, a marginalização de amplos setores da sociedade soteropolitana, a cruel expansão de uma nova informalidade, ainda mais insegura; recorde a carência de políticas públicas que enfrentem seriamente estes problemas. E lembre-se também de quanto progrediu aqui, de como até há pouco prevaleceu uma visão rasa da cidade, um urbanismo cenográfico de mau gosto, mais preocupado com disfarces do que com a cidadania dos soteropolitanos. Pense na propaganda que tantas vezes esconde a miséria com imagens histericamente festivas, ou na manipulação que já chegou a ponto de canibalizar a beleza das nossas festas populares. É por isso que lhe digo, amiga: Salvador é muito forte. Resiste. Mesmo ferida e maltratada, continua bela. Confesso minha paixão por esta rainha negra, pobre e altiva, muito justamente vaidosa.

Mas se eu pudesse, tirava-lhe a maquiagem.

18 setembro, 2005

Volto ao tema do desastre de New Orleans. As agências do governo americano praticamente se limitaram a emitir avisos (tardios) sobre a chegada do Katrina. Quem tinha carro, pôde escapar. Os mais pobres foram abandonados à própria sorte. E o descaso com que eles foram tratados mesmo depois da evidência do desastre foi chocante. Os mais pobres lá, como aqui, são os negros (em absoluta maioria). Creio que é impossível negar o ingrediente racista desta negligência. Foi o que eu disse na minha última aula de Antropologia do Negro. Entre os meus alunos há uma moça de New Orleans; ela protestou contra minha afirmativa. Mas isto me deu oportunidade de expor o conceito de racismo institucional, que este caso ilustra muito bem. Deve-se o conceito de racismo institucional a Stokely Carmichael e Charles Hamilton no seu clássico Black Power: The Politics of Liberation in America. Um outro exemplo de racismo institucional está no pouco caso com que se tem tratado por aqui da ação dos grupos de extermínio cujas vítimas são, na imensa maioria, jovens negros entre 14 e 25 anos, na periferia de Salvador e de outras metrópoles brasileiras. É tempo de prestar mais atenção neste tipo de racismo imensamente deletério.

Não sei se convenci minha aluna. Segundo uma pesquisa recentemente feita nos USA, perto de 70% dos negros americanos acusa o racismo no caso do desastre de New Orleans; menos de 30% dos brancos tem esta mesma opinião. Minha aluna é visivelmente mestiça (como eu). Pelos critérios estadunidenses, ela é negra, embora aqui na Bahia possa ser considerada branca. Isto provavelmente nada tem a ver com o ponto de vista que ela defende, com honestidade. Creio que o problema é mesmo de compreender o chamado racismo institucional. O que acham?

10 setembro, 2005

Acabo de receber um e-mail de um amigo de New York, John Collins, um antropólogo que fez pesquisas aqui na Bahia e foi meu aluno na Pós-Graduação do ISC. Ele me enviou fotos da devastação produzida pelo Katrina em New Orleans e um comentário amargo sobre a incúria do governo norte-americano, seu descaso com a população pobre e negra que foi a mais afetada. Concordamos em que o furacão cretino sediado na Casa Branca é bem mais perigoso que o Katrina. E um dos agravantes da situação foi sem dúvida o criminoso desmonte neo-liberal dos instrumentos de ação social do Estado, a famosa "redução do Estado" que o desaparelhou para as tarefas de autêntico interesse público, em benefício de uma minoria privilegiada (aquela que de Reagan para cá tem usufruido de cada vez maiores benesses e de generosas reudções dos impostos. Temos tido aqui no Brasil quase uma década de prevalência do mesmo neo-liberalismo mais ou menos encoberto por capas de hipocrisia de variadas cores. A corrupção sistêmica é só uma das faces desse modelo político. O que acham vocês?